Ao se tratar de sexualidade na contemporaneidade, nos deparamos com muitos tabus, a partir de suas determinações históricas, sócio-culturais, antropológicas e psicossociais. Tentei trazer a contribuição da psicanálise Freudiana e os estudos realizados por Michel Foucault sobre a história da sexualidade.
Uma vez que tratamos de abordagens diferentes, esse diálogo entre as duas teorias parece difícil, porém se faz necessário. Diferenciam-se desde o ponto de partida, onde na teoria de Freud é encontrada a hipótese repressiva, e em Foucault o foco é a analítica do poder.
Para entender melhor iremos retomar a concepção de história da sexualidade de Foucault, em seguida a perspectiva psicanalítica apresentada por Freud, e por fim a proposta de um diálogo entre as duas abordagens.
Começamos pela concepção de Nova História para Foucault, “Há anos os historiadores ficaram muito orgulhosos quando descobriram que podiam fazer não somente a história das batalhas, dos reis e das instituições, mas também a história da economia. Eilos todos estupefatos por terem os mais maliciosos dentes eles mostrado que também se podia fazer a história dos sentimentos, dos comportamentos, dos corpos.” (Foucault, 1984).
A partir desse novo olhar da história, começa a ser explicado o efeito produzido nos corpos, nos comportamentos e nas relações sociais por um dispositivo complexo: a sexualidade ganha espaço para ser discutida de maneira conceitual, “a sexualidade é o nome dado a um dispositivo histórico (...) à grande rede de superfície em que a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles, das resistências, encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas estratégias de saber e poder”. (Foucault, 1984).
A relação discernida por Foucault mostra que a repressão foi o modo de ligação entre Poder - Saber - Sexualidade, uma eclosão de verdade condicionada politicamente. Para ele, a questão principal não é saber o que dizer do sexo, mas a liberdade de afirmar sua importância ou negar seus efeitos, ou seja, colocá-lo em discurso, que se possa adquirir o direito de se falar em sexualidade.
Como historiador do presente, Foucault empreende sua genealogia, buscando as múltiplas causalidades imbricadas em diferentes temporalidades; percorre nos discursos, práticas, realidades e instituições como a sexualidade vai se constituindo e se disseminando na forma de um dispositivo no corpo social.
Percorrendo a “História da Sexualidade” vemos que o exercício do prazer encontra-se atrelado a uma reflexão ética cujo problema não é saber quais são os atos permitidos ou proibidos, mas com que força se é levado pelos prazeres e desejos. O uso dos é prazeres constituído em função de diferentes estratégias que permitam obter prazer como convém. A enkrateia ou “temperança” revela-se a como um trabalho sobre si mesmo para a obtenção da liberdade: “ser livre em relação aos prazeres é não estar a seu serviço, é não ser seu escravo”. (Foucault, 1984)
Em “a vontade de saber” Foucault (1976) passa a estudar a história da sexualidade em termos de jogos de poder e de verdade, trabalho no qual percebemos a instauração, a partir do séc.XIX, de uma “ciência confissão” com seus procedimentos para fazer falar o sexo em termos de uma codificação clínica que estabelece os parâmetros para o normal e o anormal no campo da sexualidade. Aparecem, então, personagens novos na família tradicional: “ a mulher nervosa”, a “esposa frígida”, a “moça histérica”, o “marido impotente”.
É neste espaço de manobras que veio instalar-se a Psicanálise, que vem desnudar a sexualidade até então encoberta pelo modelo neurológico. Para Foucault, a história do dispositivo de sexualidade, a partir da modernidade pode valer como arqueologia da Psicanálise. Esta “desempenha vários papéis simultâneos nesse dispositivo: é mecanismo de fixação da sexualidade sobre o sistema de aliança; (...) funciona como elemento diferenciador na tecnologia geral do sexo. Em torno dela, a grande exigência da confissão que se formara
há tanto tempo, assume um novo sentido, o de uma injunção para eliminar o recalque.” (Foucault, 2007, p.123)
A partir do séc. XVII, a sexualidade centrada na família é intensificada em duas direções: o eixo pais e filhos e o eixo marido-mulher. A predominância do assunto ainda pertencia à medicina, que emerge toda uma teorização fisiológica em torno do corpo feminino e da precocidade da sexualidade infantil.
No final do séc. XIX, a Psicanálise emerge como saber médico para tratar as chamadas “doenças nervosas”, constituindo-se como terapêuticas frente às demandas de ajuda da família burguesa que sofre os efeitos da intensificação da repressão, produzida pelo dispositivo de sexualidade.
Freud esteve à frente de seu tempo ao pensar em um funcionamento psíquico a nível inconsciente, trazendo a tona uma ideia de sexualidade infantil, sendo alvo de muitas críticas. Caracterizado por não limitar-se às atividades de prazer que dependem do aparelho genital, envolvendo toda uma série de excitações e atividades presentes desde a infância, Freud articula a sexualidade às necessidades básicas do Indivíduo.
Podemos falar de um corpo infantil que vai se erotizando pelo investimento de energia libidinal nas diferentes zonas erógenas: oral, anal, e genital. A Psicanálise nos fala, portanto, não de uma sexualidade limitada ao corpo biológico, mas produzida pelas experiências psíquicas inconscientes.
Freud, ao estudar os fenômenos psíquicos do indivíduo, relaciona a sexualidade na construção de sua cultura, além de seu próprio “Eu”: “Os historiadores da cultura parecem unânimes em supor que, mediante esse desvio das forças pulsionais sexuais das metas sexuais e por sua orientação para novas metas, num processo que merece o nome de sublimação, adquirem-se poderosos componentes para todas as realizações culturais.” (Freud, 1905).
De acordo com Freud (1905) a civilização ergueu-se com base na repressão da sexualidade e na canalização da energia libidinal para outras atividades artísticas e culturais, via processo sublimatório: “a sublimação do instinto constitui um aspecto particularmente evidente do desenvolvimento cultural; e é ela que torna possível as atividades psíquicas superiores, científicas, artísticas e ideológicas, o desempenho de um papel tão importante na vida civilizada”. (Freud,1986, p. 118)
A ideia preconizada por Freud de que não é a razão e a consciência que determinam nossas ações, mas sim o inconsciente, nos leva a uma interlocução de caráter mais crítico de Foucault em relação à Psicanálise.
Para Foucault (1984), a Psicanálise ocupou uma posição singular no final do séc. XIX, pois representou a ruptura da tecnologia médica do instinto de suas correlações com a hereditariedade e com todos os racismos e eugenismos. Freud utiliza-se das “mesmas vias pelas quais as perturbações sexuais se propagam para as outras funções do corpo devem também prestar, na saúde, um outro importante serviço. Por elas se daria a atração das forças pulsionais da sexualidade para outros alvos não-sexuais, ou seja, a sublimação da sexualidade” (Freud, 1905).
A Psicanálise levanta a importância da sexualidade como veículo de expressão de nossos desejos, pois marcam nossa singularidade e diferença dos indivíduos, com isso Foucault faz a relação ao comprometimento dos saberes científicos com os investimentos de poder. Tanto a contribuição de Foucault, quanto de Freud nos permitem em meio às injunções do bio-poder, que culmina em direções problemáticas, analisar uma sociedade contemporânea em sua essência histórica .
Fonte:
FOUCAULT, Michel. A História da Sexualidade –I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2007; A História da Sexualidade –II: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 2007; A História da Sexualidade –III: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 9ª edição 2007.
FREUD, Sigmund. Três Ensaios para uma Teoria Sexual. In: Sigmund Freud – Obras Completas. v. 7, 2. Rio de Janeiro: Imago, 1987.
ASSIS, Maria F. P. Por Uma História da Sexualidade entre Freud e Foucault: Costuras e Alinhavos, Campus Jataí/UFG
Dica de leitura: FOUCAULT, Michel. Um diálogo sobre os prazeres do sexo: Nietzsche, Freud e Marx. 2ª Edição – São Paulo: Landy, 2005.
Autor: Ana Alice Brites de Barros